O vinho é uma bebida apreciada desde tempos imemoriais, tendo as civilizações mediterrâneas (Egipto, Roma, Grécia, etc.) gerado uma cultura simbólica em redor do seu consumo e dos seus efeitos anímicos. A região do vale do rio Paiva, não sendo um território vinícola de renome, tem uma arraigada cultura etnográfica ligada à autoprodução e à transformação da uva em vinho em lagares tradicionais construídos pedra, usando a força humana e instrumentos rudimentares de tração mecânica para extrair o néctar do fruto.
A principal casta destas aldeias foi até há poucos anos a “americana” ou “catova”, uma que se começou a plantar e a enxertar no final do século XIX, na sequência da devastadora praga de filoxera que dizimou as vinhas tradicionais. A vinha americana, sendo imune à filoxera, passou a ser a principal casta em toda a zona norte da Beira Alta. Na primeira metade do século XX, a produção de vinho americano era muitas vezes superior ao consumo e era escoada para armazéns nas grandes cidades, especialmente aqueles situados na zona oriental de Lisboa onde vivia um número muito significativo de pessoas oriundas de aldeias de Castro Daire, São Pedro do Sul, Cinfães e Resende.
No final de setembro de 2020, acompanhámos José Silva e a sua filha Cátia Silva, no processo de colheita e pisa de uva americana em lagar tradicional em pedra. Pisar o vinho equivale ao processo de desengace, ou seja da separação da uva dos cachos e de esmagamento, ou seja do rebentamento da película, para que o sumo da uva, o mosto, possa iniciar o processo de fermentação. José Silva explica qual a técnica de pisar a uva, rodando as pernas e apertando os bagos para o fundo, caminhando em espiral do exterior para o centro do lagar.
Depois de uma primeira pisa realizada no mesmo dia da vindima, volta-se no dia seguinte a voltar a pisar, estando o mosto a começar a ferver, apertando a goma com os pés para o fundo do lagar. Segundo José Silva “Não se gera o vinho enquanto a “manta” (ou “massa”) não começar a descer”. Refere ainda que na pisa manual o vinho apanha mais “alma”, ou seja mais goma da casca, ao contrário do esmagamento mecânico em que a separação entre o vinho e a massa é mais direta. Nas suas próprias palavras “A borra do vinho é sinal de que o vinho tem alma. É a mãe, aquela que dá a força ao vinho”.
Em paralelo, José Silva prensará e deixará secar a massa para produzir aguardente, levando-a a um alambique existente na aldeia próxima de Póvoa do Veado. Também fazem jeropiga ou vinho abafado: o mosto da uva branca ainda antes de ser pisada sai pela bica do lagar ainda antes de ferver. Posteriormente faz-se uma medida de três litros de mosto (que é doce) para um litro de aguardente. A aguardente irá “abafar” ou “tapar” o processo de fermentação.
Depois da pisa tradicional, o mosto irá para uma pensa mecânica, que permite prensar a massa com diferentes pressões, sem dilacerar as grainhas, evitando assim a passagem de taninos agressivos para o vinho. Depois da prensagem o vinho vai para uma primeira cuba, em que as componentes mais pesadas (as borras) sedimentam e o líquido fica acima daquelas. A operação de trasfega, ou seja de passagem do vinho de uma cuba para outra, é efetuada depois da fermentação estar completa e permitirá separar definitivamente o vinho “limpo” das massas residuais.
Entrevista e gravação efetuadas no dia 26 de setembro de 2020 por Luís Costa com gravador Zoom H4n e microfones binaurais Soundman, tendo contado com colaboração de Ana Rodríguez. Edição sonora de Luís Costa.
Metadados disponíveis em: https://www.archive.binauralmedia.org/portfolio-items/raso-pisa-de-uva-em-lagar-tradicional/